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http://www.periodicos.ufes.br/colartes/article/view/7697/5490
Isso não é
flamenco
This is not
flamenco
Ivna
Vieira Messina[1]
Resumo:
Esse Relato de Experiência pretende registrar e refletir sobre os procedimentos
e processos criativos relacionados ao desenvolvimento do projeto Isso não é
flamenco, no qual eu, artista pesquisadora de dança flamenca, convidei artistas
das artes cênicas e das artes visuais para dialogarem com essa linguagem a
partir de encontros poéticos. Desses encontros foram construídos um blog que
era alimentado com o material que surgia a partir dos diálogos com os artistas,
e trabalhos poéticos que foram expostas em processo nos três eventos que
denominei de “saraus”.
Palavras-chave:
flamenco, artes, poética, processos criativos, dança.
Abstract: This Experience Report
pretends relate and reflects about the proceedments and creative process
realized belong the first edition of the Isso não é flamenco[2]
project, where me, an flamenco’s research artist, had invited artists from the
cenical arts and visual arts for dialogue with this language throw poetics
meetings. A blog contenting the stuff that born from this dialogs and three
events called “saraus” where the poetical work have been showed from this
meetings
Keywords: flamenco, arts, poetic, creative process,
dance.
Isso não é flamenco. Mas o que é isso
então? Primeiro quero falar sobre o porquê desse nome para o projeto
desenvolvido por mim em parceria com alguns artistas, em Vitória, ES, no
segundo semestre de 2012. O flamenco é uma linguagem que, baseada no tripé
baile-música-poesia, vem da tradição e sua disseminação parte, na maioria das
vezes, da cópia e da tentativa de reprodução. É comum em certos nichos a
valorização da manutenção da “pureza” dessa manifestação, algo que acredito ser
improvável já que o próprio flamenco surgiu do encontro de culturas mouras,
judaicas, ciganas e espanholas e segue bebendo na fonte de diversas culturas,
inclusive latino americanas para a criação de seu repertório corporal, musical
e poético. Para algumas pessoas a expressão “eso es flamenco” se traduz como um
elogio, como um selo de legitimação de que o que se está fazendo se trata do
tal “flamenco puro”.
A partir desse pensamento já lhes informo
que não quero tratar de tradição nem espero legitimação. Talvez como uma
desculpa antecipada aos ditos “puristas” do flamenco que podem querer vir
reclamar da minha tentativa de buscar um outro caminho dentro da técnica.
O estudo do flamenco faz parte da minha
formação como bailarina há 12 anos. Como artista a minha formação passa também
por 14 anos dedicados ao ballet clássico, por uma graduação em Artes plásticas
na Ufes, uma graduação sequencial em Fotografia na Uvv, intérprete-criadora nas
investigações de dança-teatro do Grupo Z de Teatro há 6 anos e bailarina e
coreógrafa da Alma Andaluza cia de Danza que se dedica exclusivamente ao
flamenco há 9 anos.
Acredito que a diversidade da minha
formação me levou a questionamentos sobre a minha prática na dança flamenca,
que foram reforçados após uma temporada de estudos na Espanha durante os três
primeiros meses de 2012.
Porque a escolha por uma linguagem
estrangeira à minha nacionalidade, sem nenhum vínculo genético direto? Como
posso aproximar minha prática como artista criadora da prática do flamenco,
construindo uma pesquisa à partir da contaminação e da disseminação? Como
trazer uma prática contextualizada num território estrangeiro para a minha
realidade, o meu espaço de vivência?
Antes de dar continuidade preciso dizer
que essa possibilidade de pensar o flamenco à partir da contaminação de outras
culturas e linguagens e/ou de um fazer artístico autoral não é novidade. Há
anos o flamenco é disseminado por todo o mundo, criando um circuito peculiar de
artistas profissionais e amadores, professores e estudantes, eventos e
produtos, livros, seminários e pesquisas teóricas, e muitos artistas pensam sua
prática partindo desses pontos de vista. Inclusive os próprios artistas
espanhóis se embrenham nesse percurso do uso do flamenco como suporte para seu
discurso poético para além da repetição da tradição.
Assim, uma das propostas que construí para
investigar essas possibilidades de contaminação foi o Isso não é flamenco,
convidando artistas de outras áreas que se interessavam em contaminar e serem
contaminados. Esses artistas eram todos próximos à mim, que já haviam
demonstrado interesse em relacionar seus processos criativos ao flamenco.
Participaram do projeto o Coletivo
Peixaria, grupo de artistas ilustradores, Ignez Capovilla, artista visual,
Grupo Z de Teatro e André Arçari, artista multimídia. Cada um com um interesse
particular para desenvolver em nossos encontros, que eram simultâneos e
aconteceram de agosto à novembro de 2012, seguindo uma demanda cronológica do
edital que patrocinou o projeto (o prazo para realização de todos os pontos que
ele propunha era até 31 de novembro).
As maneiras de acesso do público ao
desenvolvimento e resultados desses encontros foram através de uma fanpage[3] na rede social Facebook,
um blog[4] e três eventos, que
denominei “saraus”, que aconteceram ao longo de novembro em três espaços culturais
diferentes, na sede do grupo Repertório (atual Casa Má Companhia) no centro da
cidade, no estúdio de flamenco Alma Andaluza em Jardim da Penha, e no Jardim
Secreto na Praia do Canto.
Cada grupo ou artista envolvido
desenvolveu diferentes propostas durante o projeto. Algumas foram
experimentadas superficialmente, outras descartadas e as experimentadas mais a
fundo foram aquelas levadas aos saraus.
Eu já havia trabalhado com o Coletivo
Peixaria em 2011 no Flamenco Sketches, evento proposto por eles no qual eu e
mais um bailarino dançávamos flamenco enquanto alguns ilustradores faziam
registros rápidos de nossa atuação. Partimos daí para a o Isso não é flamenco e
os desenhistas passaram a frequentar os ensaios da cia Alma Andaluza, grupo
especializado em dança flamenca do qual sou integrante, para aproximarem esse
contato com o universo dessa dança. No primeiro sarau foi apresentada uma
pequena exposição dos rascunhos resultantes desses encontros, já no segundo as
bailarinas da Alma Andaluza se apresentaram enquanto os integrantes do coletivo
pintavam painéis aos olhos dos espectadores do evento. Essa mesma ação foi
repetida no terceiro sarau, que também conteve uma exposição de desenhos
finalizados dos artistas, resultado de todo esse período em contato com a
linguagem do flamenco.
A primeira proposta que surgiu entre eu e
a Ignez Capovilla foi a de partir da música pois, apesar dela ter a pesquisa
baseada na fotografia, toca instrumentos e tem uma relação muito forte com a
música. Passamos dias em sala escutando flamenco, estudando suas bases rítmicas
e pensando quais músicas de bandas que nós gostamos poderiam ser substrato para
uma possível performance que conteria uma bailaora[5] dançando ao som de uma
banda de rock. As nossas investidas nesse campo não nos satisfizeram e por isso
não levamos essa ideia à frente. No meio desse percurso, em uma conversa
virtual sobre o projeto com um amigo performer, o Túlio Rosa, veio a sugestão
de dançar flamenco debaixo da água. A fotografia e o vídeo resolveriam de
alguma maneira a disseminação dessa ação, e assim a Ignez incorporou essa
proposta como uma nova possibilidade. A visão de estar dançando debaixo da água
me trazia a ideia de silêncio, termo que também é usado para denominar uma
parte do baile tradicional por Alegrías[6], assim denominamos o vídeo
de “Silêncio de Alegrias”. O vídeo era projetado em looping nos espaços que
receberam os saraus e a cada evento ele era remodelado, ganhando novas edições
e trilhas. Uma das trilhas foi um silêncio de Alegrías composto pelo
guitarrista flamenco Roberto Monteiro para o vídeo.
Os encontros com o Grupo Z de Teatro não
tinham propostas definidas à princípio. Pela minha relação com o Grupo, com o
qual trabalho há cerca de seis anos, já sabia que as experimentações seguiriam
a metodologia de investigação adotada pelo Z, uma dramaturgia que vem do texto
e do trabalho corporal. Pensávamos no começo em utilizar poemas do Federico
Garcia Lorca, poeta modernista espanhol que tinha uma produção vinculada ao
flamenco. Depois o Fernando Marques, diretor do grupo, sugeriu que partíssemos
de textos dramatúrgicos e a sugestão primeira foi a de usarmos trechos do Gota
d’água do Chico Buarque e Paulo Pontes, pois segundo ele, a personagem
principal, Joana, tinha características que ele considerava pertinentes ao
flamenco como a intensidade e a passionalidade, além da cadência rítmica do
texto que poderia jogar bem em cena.
A partir daí fomos para a sala
experimentar 3 cenas. A primeira era um diálogo em que Joana, após ter sido
abandonada por seu marido Jazão, o mal dizia para as vizinhas. Eu interpretava
Joana com o corpo, através de passos e percussões corporais e Alexsandra
Bertoli, outra integrante o Grupo Z, se utilizava da voz e de um corpo
expressivo mais vinculado à linguagem teatral. A segunda cena era um embate
entre Joana e Jasão, onde eu como a personagem feminina ditava o texto apenas
com o corpo, seguindo uma sequência com um crescimento de intensidade que se
aproximava da estrutura de um baile tradicional flamenco e o ator Daniel Boone
como o personagem masculino dizia as falas dele e criava essa comunicação com a
ex-mulher. Na terceira cena Joana fazia um feitiço para ter seu marido de
volta, e com isso foi feito um jogo de vozes entre todos os integrantes do
grupo, Fernando, Daniel, Alexsandra e Carla van den Bergen enquanto eu fazia
uma Joana ganhando forças até um rompante de energia que terminava com um sonoro
grito de “sarava” coletivo dos intérpretes. A cada sarau uma cena era acrescida
à nossa performance.
Durante os encontros com o Z
experimentamos levar vários outros textos para apontar outros interesses nesse
encontro. Tínhamos vontade de, por exemplo, falar das mãos, o que para isso
reuniríamos a gravura “Las manos cortadas” de Lorca, a passagem sobre as mãos
ensanguentadas que nunca se limpavam de Lady Macbeth de Shakespeare, e as
movimentações em arabescos da dança flamenca. Tais ideias foram abandonadas
pois escolhemos apresentar uma sequência de experimentações a partir de um
mesmo texto.
A participação do André Arçari foi um
pouco mais difusa, tanto por não termos nenhuma proposta inicial para
trabalhar, quanto por ele ter se interessado muito pelos procedimentos experimentados
pelos outros artistas. André fez uma série de fotografias durante os ensaios do
Peixaria com a Alma Andaluza cujo foco eram as cores borradas dos figurinos em
movimento, produziu uma série de vídeos chamado Split-series, nos quais se
apropriava e unia lado a lado cenas de filmes do cineasta Carlos Saura[7], criando diálogos entre
cenas distintas, e ao fim criou um livro de artista, cujas folhas são
pranchetas nas quais estão algumas das impressões dele sobre esse encontro com
o flamenco, em forma de textos e imagens.
A experiência do projeto
funcionou como laboratório para materializar questões e propostas vividas por
mim e pelos artistas convidados. Vejo que o desenvolvimento de meu trabalho acerca
dos questionamentos que me movem como pesquisadora na área da dança flamenca
partem agora de um outro ponto de vista mais amadurecido por esse encontro
estético com os desdobramentos e com o público. As vivências contribuíram para
o crescimento de meu arsenal criativo, e me alimentaram tanto na continuidade
das pesquisas híbridas, quanto na prática diária da técnica e criação da dança
flamenca tradicional.
Creio que meu olhar
estrangeiro para o flamenco, assim como o de meus colegas participantes do projeto,
nos levou a experimentar características vistas como icônicas do flamenco, como
as fortes expressões, movimentos vigorosos, figurinos e cores. Mas para mim
isso era um ponto importante de ser tocado pois, muitas vezes, como praticante
do flamenco a relação de cópia e repetição que se institui passa fortemente por
esses clichês.
Depois da experiência do
Isso não é flamenco outras vontades nasceram em mim e de alguns dos outros
artistas participantes, possivelmente serão ponto de partida para próximas
investidas que darão continuidade ao projeto.
[1] Artista
pesquisadora, graduada em Artes plásticas pela Universidade Federal do Espírito
Santo.
[3]
www.facebook.com/issonaoeflamenco
[5] Termo designado
para as bailarinas que dançam flamenco.
[7] Carlos Saura:
cineasta espanhol cuja filmografia tem como tema recorrente a cultura flamenca.