30.5.20

Relato de Experiência para Colartes

O texto abaixo foi um relato de experiência apresentado no COLARTES/Modos de Fazer/Exibir do Centro de Artes da Ufes, em 2013.

Acesse também em:
http://www.periodicos.ufes.br/colartes/article/view/7697/5490


Isso não é flamenco
This is not flamenco
Ivna Vieira Messina[1]

Resumo: Esse Relato de Experiência pretende registrar e refletir sobre os procedimentos e processos criativos relacionados ao desenvolvimento do projeto Isso não é flamenco, no qual eu, artista pesquisadora de dança flamenca, convidei artistas das artes cênicas e das artes visuais para dialogarem com essa linguagem a partir de encontros poéticos. Desses encontros foram construídos um blog que era alimentado com o material que surgia a partir dos diálogos com os artistas, e trabalhos poéticos que foram expostas em processo nos três eventos que denominei de “saraus”.
Palavras-chave: flamenco, artes, poética, processos criativos, dança.

Abstract: This Experience Report pretends relate and reflects about the proceedments and creative process realized belong the first edition of the Isso não é flamenco[2] project, where me, an flamenco’s research artist, had invited artists from the cenical arts and visual arts for dialogue with this language throw poetics meetings. A blog contenting the stuff that born from this dialogs and three events called “saraus” where the poetical work have been showed from this meetings
Keywords: flamenco, arts, poetic, creative process, dance.


Isso não é flamenco. Mas o que é isso então? Primeiro quero falar sobre o porquê desse nome para o projeto desenvolvido por mim em parceria com alguns artistas, em Vitória, ES, no segundo semestre de 2012. O flamenco é uma linguagem que, baseada no tripé baile-música-poesia, vem da tradição e sua disseminação parte, na maioria das vezes, da cópia e da tentativa de reprodução. É comum em certos nichos a valorização da manutenção da “pureza” dessa manifestação, algo que acredito ser improvável já que o próprio flamenco surgiu do encontro de culturas mouras, judaicas, ciganas e espanholas e segue bebendo na fonte de diversas culturas, inclusive latino americanas para a criação de seu repertório corporal, musical e poético. Para algumas pessoas a expressão “eso es flamenco” se traduz como um elogio, como um selo de legitimação de que o que se está fazendo se trata do tal “flamenco puro”.
A partir desse pensamento já lhes informo que não quero tratar de tradição nem espero legitimação. Talvez como uma desculpa antecipada aos ditos “puristas” do flamenco que podem querer vir reclamar da minha tentativa de buscar um outro caminho dentro da técnica.
O estudo do flamenco faz parte da minha formação como bailarina há 12 anos. Como artista a minha formação passa também por 14 anos dedicados ao ballet clássico, por uma graduação em Artes plásticas na Ufes, uma graduação sequencial em Fotografia na Uvv, intérprete-criadora nas investigações de dança-teatro do Grupo Z de Teatro há 6 anos e bailarina e coreógrafa da Alma Andaluza cia de Danza que se dedica exclusivamente ao flamenco há 9 anos.
Acredito que a diversidade da minha formação me levou a questionamentos sobre a minha prática na dança flamenca, que foram reforçados após uma temporada de estudos na Espanha durante os três primeiros meses de 2012.
Porque a escolha por uma linguagem estrangeira à minha nacionalidade, sem nenhum vínculo genético direto? Como posso aproximar minha prática como artista criadora da prática do flamenco, construindo uma pesquisa à partir da contaminação e da disseminação? Como trazer uma prática contextualizada num território estrangeiro para a minha realidade, o meu espaço de vivência?
Antes de dar continuidade preciso dizer que essa possibilidade de pensar o flamenco à partir da contaminação de outras culturas e linguagens e/ou de um fazer artístico autoral não é novidade. Há anos o flamenco é disseminado por todo o mundo, criando um circuito peculiar de artistas profissionais e amadores, professores e estudantes, eventos e produtos, livros, seminários e pesquisas teóricas, e muitos artistas pensam sua prática partindo desses pontos de vista. Inclusive os próprios artistas espanhóis se embrenham nesse percurso do uso do flamenco como suporte para seu discurso poético para além da repetição da tradição.
Assim, uma das propostas que construí para investigar essas possibilidades de contaminação foi o Isso não é flamenco, convidando artistas de outras áreas que se interessavam em contaminar e serem contaminados. Esses artistas eram todos próximos à mim, que já haviam demonstrado interesse em relacionar seus processos criativos ao flamenco.
Participaram do projeto o Coletivo Peixaria, grupo de artistas ilustradores, Ignez Capovilla, artista visual, Grupo Z de Teatro e André Arçari, artista multimídia. Cada um com um interesse particular para desenvolver em nossos encontros, que eram simultâneos e aconteceram de agosto à novembro de 2012, seguindo uma demanda cronológica do edital que patrocinou o projeto (o prazo para realização de todos os pontos que ele propunha era até 31 de novembro).
As maneiras de acesso do público ao desenvolvimento e resultados desses encontros foram através de uma fanpage[3] na rede social Facebook, um blog[4] e três eventos, que denominei “saraus”, que aconteceram ao longo de novembro em três espaços culturais diferentes, na sede do grupo Repertório (atual Casa Má Companhia) no centro da cidade, no estúdio de flamenco Alma Andaluza em Jardim da Penha, e no Jardim Secreto na Praia do Canto.
Cada grupo ou artista envolvido desenvolveu diferentes propostas durante o projeto. Algumas foram experimentadas superficialmente, outras descartadas e as experimentadas mais a fundo foram aquelas levadas aos saraus.
Eu já havia trabalhado com o Coletivo Peixaria em 2011 no Flamenco Sketches, evento proposto por eles no qual eu e mais um bailarino dançávamos flamenco enquanto alguns ilustradores faziam registros rápidos de nossa atuação. Partimos daí para a o Isso não é flamenco e os desenhistas passaram a frequentar os ensaios da cia Alma Andaluza, grupo especializado em dança flamenca do qual sou integrante, para aproximarem esse contato com o universo dessa dança. No primeiro sarau foi apresentada uma pequena exposição dos rascunhos resultantes desses encontros, já no segundo as bailarinas da Alma Andaluza se apresentaram enquanto os integrantes do coletivo pintavam painéis aos olhos dos espectadores do evento. Essa mesma ação foi repetida no terceiro sarau, que também conteve uma exposição de desenhos finalizados dos artistas, resultado de todo esse período em contato com a linguagem do flamenco.



A primeira proposta que surgiu entre eu e a Ignez Capovilla foi a de partir da música pois, apesar dela ter a pesquisa baseada na fotografia, toca instrumentos e tem uma relação muito forte com a música. Passamos dias em sala escutando flamenco, estudando suas bases rítmicas e pensando quais músicas de bandas que nós gostamos poderiam ser substrato para uma possível performance que conteria uma bailaora[5] dançando ao som de uma banda de rock. As nossas investidas nesse campo não nos satisfizeram e por isso não levamos essa ideia à frente. No meio desse percurso, em uma conversa virtual sobre o projeto com um amigo performer, o Túlio Rosa, veio a sugestão de dançar flamenco debaixo da água. A fotografia e o vídeo resolveriam de alguma maneira a disseminação dessa ação, e assim a Ignez incorporou essa proposta como uma nova possibilidade. A visão de estar dançando debaixo da água me trazia a ideia de silêncio, termo que também é usado para denominar uma parte do baile tradicional por Alegrías[6], assim denominamos o vídeo de “Silêncio de Alegrias”. O vídeo era projetado em looping nos espaços que receberam os saraus e a cada evento ele era remodelado, ganhando novas edições e trilhas. Uma das trilhas foi um silêncio de Alegrías composto pelo guitarrista flamenco Roberto Monteiro para o vídeo.




Os encontros com o Grupo Z de Teatro não tinham propostas definidas à princípio. Pela minha relação com o Grupo, com o qual trabalho há cerca de seis anos, já sabia que as experimentações seguiriam a metodologia de investigação adotada pelo Z, uma dramaturgia que vem do texto e do trabalho corporal. Pensávamos no começo em utilizar poemas do Federico Garcia Lorca, poeta modernista espanhol que tinha uma produção vinculada ao flamenco. Depois o Fernando Marques, diretor do grupo, sugeriu que partíssemos de textos dramatúrgicos e a sugestão primeira foi a de usarmos trechos do Gota d’água do Chico Buarque e Paulo Pontes, pois segundo ele, a personagem principal, Joana, tinha características que ele considerava pertinentes ao flamenco como a intensidade e a passionalidade, além da cadência rítmica do texto que poderia jogar bem em cena.



A partir daí fomos para a sala experimentar 3 cenas. A primeira era um diálogo em que Joana, após ter sido abandonada por seu marido Jazão, o mal dizia para as vizinhas. Eu interpretava Joana com o corpo, através de passos e percussões corporais e Alexsandra Bertoli, outra integrante o Grupo Z, se utilizava da voz e de um corpo expressivo mais vinculado à linguagem teatral. A segunda cena era um embate entre Joana e Jasão, onde eu como a personagem feminina ditava o texto apenas com o corpo, seguindo uma sequência com um crescimento de intensidade que se aproximava da estrutura de um baile tradicional flamenco e o ator Daniel Boone como o personagem masculino dizia as falas dele e criava essa comunicação com a ex-mulher. Na terceira cena Joana fazia um feitiço para ter seu marido de volta, e com isso foi feito um jogo de vozes entre todos os integrantes do grupo, Fernando, Daniel, Alexsandra e Carla van den Bergen enquanto eu fazia uma Joana ganhando forças até um rompante de energia que terminava com um sonoro grito de “sarava” coletivo dos intérpretes. A cada sarau uma cena era acrescida à nossa performance.



Durante os encontros com o Z experimentamos levar vários outros textos para apontar outros interesses nesse encontro. Tínhamos vontade de, por exemplo, falar das mãos, o que para isso reuniríamos a gravura “Las manos cortadas” de Lorca, a passagem sobre as mãos ensanguentadas que nunca se limpavam de Lady Macbeth de Shakespeare, e as movimentações em arabescos da dança flamenca. Tais ideias foram abandonadas pois escolhemos apresentar uma sequência de experimentações a partir de um mesmo texto.
A participação do André Arçari foi um pouco mais difusa, tanto por não termos nenhuma proposta inicial para trabalhar, quanto por ele ter se interessado muito pelos procedimentos experimentados pelos outros artistas. André fez uma série de fotografias durante os ensaios do Peixaria com a Alma Andaluza cujo foco eram as cores borradas dos figurinos em movimento, produziu uma série de vídeos chamado Split-series, nos quais se apropriava e unia lado a lado cenas de filmes do cineasta Carlos Saura[7], criando diálogos entre cenas distintas, e ao fim criou um livro de artista, cujas folhas são pranchetas nas quais estão algumas das impressões dele sobre esse encontro com o flamenco, em forma de textos e imagens.




A experiência do projeto funcionou como laboratório para materializar questões e propostas vividas por mim e pelos artistas convidados. Vejo que o desenvolvimento de meu trabalho acerca dos questionamentos que me movem como pesquisadora na área da dança flamenca partem agora de um outro ponto de vista mais amadurecido por esse encontro estético com os desdobramentos e com o público. As vivências contribuíram para o crescimento de meu arsenal criativo, e me alimentaram tanto na continuidade das pesquisas híbridas, quanto na prática diária da técnica e criação da dança flamenca tradicional.
Creio que meu olhar estrangeiro para o flamenco, assim como o de meus colegas participantes do projeto, nos levou a experimentar características vistas como icônicas do flamenco, como as fortes expressões, movimentos vigorosos, figurinos e cores. Mas para mim isso era um ponto importante de ser tocado pois, muitas vezes, como praticante do flamenco a relação de cópia e repetição que se institui passa fortemente por esses clichês.
Depois da experiência do Isso não é flamenco outras vontades nasceram em mim e de alguns dos outros artistas participantes, possivelmente serão ponto de partida para próximas investidas que darão continuidade ao projeto.


[1] Artista pesquisadora, graduada em Artes plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo.
[2] Tradução para inglês: This is not flamenco.
[3] www.facebook.com/issonaoeflamenco
[4] www.issonaoeflamenco.blogspot.com
[5] Termo designado para as bailarinas que dançam flamenco.
[6] Ritmo tradicional do flamenco, que faz parte da família rítmica das Cantiñas.
[7] Carlos Saura: cineasta espanhol cuja filmografia tem como tema recorrente a cultura flamenca.